Marcella Carvalho
De origem filisteia
em brasa de terreno inimigo
meu mundo já não é meu abrigo
envergonhada em fixa ideia:
corte seus próprios cabelos
que orgulho é igual seborreia
a mais nojenta viscosidade
desinfetada por mecânicos empregos.
O medo, monstro hipnótico,
brande em brilhante ceifa a falsidade
e em um delírio neurótico
grita: seria hipocrisia
seria hipocrisia
Qual seria então nossa valia?
Cegueira de carga genética
depara-se sempre com a ferida imagética
de ter utilidade um dia.
Como se sentir amado
onde até o fluido e sensual esgoto
é mais elegante em desgosto
que nossos covardes sonhos errantes?
Se em inveja hermética
quisemos cegá-los, febris,
será em rendição poética
que o humilhado se torna feliz.
Eis, portanto, sua trajetória
abafada pelo tempo e pela memória.
Falanges espasmódicas
se apoiam em ombros vacilantes
e o líder em ruínas de fortaleza panóptica
berra ao céu seco e intolerante:
Nada fiz, bendita esfinge exótica!
Mas flagraram o burguês farsante
que legisla sobre gato vivo ou morto,
o pilar de sua lente é torto,
decisão é narciso camuflado.
Sua débil agnosia
recalca o estranho enquadrado.
Sua catarata,
vista grossa de escama chata
banha-se em leite ilusório
escudo para entropia vazia.
Seu estrabismo desesperado
esconde-se em sádico casório
da moral com a culpa vadia.
Mas o negro andaluz triunfal,
erguendo tenebrário em neblina estética
derrubam-nos em lagoa patética.
Vampiros de canino fatal
esfregam sem piedade
nos pulsantes vidros em cal
as patas de trêmula realidade.
E as mãos antiderrapantes
de cientistas pós-modernos
interditadas da tentação matreira
de atirar o Ensaio sobre a Cegueira
à centrífuga do inferno
percebem que a vida-furacão
é uma maçaroca de moscas meladas
e pomposas, espantadas ao clarão da razão.
O assombro de tal feito
nos deixa tão chocados.
Fomos pelo fado amaldiçoados!
Tantos os relacionamentos
em verdades hipotecadas
o calote é tão grande cilada
a desconfiança é generalizada
o pavor quer a vista arrancar!
Se a vida foi sombra em defeito
da cidade-fantasma exigimos o prefeito,
como aos dragões fugazes encantar?
O silêncio, serpente de fogo,
cavalga em pontas de logro
à procura do carinho mais tolerante
paraíso cósmico e errante
que queratinas despedaçadas,
digitais grossas, geladas,
buscam patinando em mármore,
atmosfera de amônio em árvore,
que escalo, espiral de um caldo,
poção de espírito nunca a salvo.
Borracha em chão,
borracha em chão.
Rola covarde o coração.
Quero o beco frio e alucinante
Cara em abismo
Nariz pulverizante
Pois as esquinas mais esqueléticas
as verdades mais sintéticas
são diminutos ácaros de ícaros mosca
Macunaíma de face tosca
bricolage de universos surreais
não aspira por espelho
em invernos matinais
mas por íris-negra, ultradimensional
o mais sofisticado aparelho
relegado ao trivium banal.
Explico que bacanal mais santo
é o que vem do espanto,
encanto, serpentina, encruzilhada
dançante de xamânica jornada,
titânio de carapaça,
caridade à vida sem graça
entre malabares de risos
que acobertam sisos
uma hora inflamados de tanto negar:
— alguém quer meu pão para o jantar?
Às vezes o canibal niilismo
precisa de um bode de sadismo.
— vai uma heroína narcisista?
Fantasia derrotista
de uma velha que acabou de nascer.
Cansou de ordenhar, em lápide, uva.
Mas não sou caracol de guarda-chuva.
Poseidon em tempestade
deve ter mais fidelidade
do que o cego em vertiginosa estrada,
sonhando que assim estava
e acorda, suado,
em dúvida?
Note: Marcella é minha amiga e companheira de aulas e seminários.
Alma inquieta que tudo percebe e absorve - devolve é certo, com mais brilho, com mais lógica, com mais doçura.
Renée Lee
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