30 de nov. de 2010

CRUZES BRANCAS EM ABISMOS


Marcella Carvalho

De origem filisteia

em brasa de terreno inimigo

meu mundo já não é meu abrigo

envergonhada em fixa ideia:

corte seus próprios cabelos

que orgulho é igual seborreia

a mais nojenta viscosidade

desinfetada por mecânicos empregos.

O medo, monstro hipnótico,

brande em brilhante ceifa a falsidade

e em um delírio neurótico

grita: seria hipocrisia

seria hipocrisia

Qual seria então nossa valia?

Cegueira de carga genética

depara-se sempre com a ferida imagética

de ter utilidade um dia.

Como se sentir amado

onde até o fluido e sensual esgoto

é mais elegante em desgosto

que nossos covardes sonhos errantes?

Se em inveja hermética

quisemos cegá-los, febris,

será em rendição poética

que o humilhado se torna feliz.

Eis, portanto, sua trajetória

abafada pelo tempo e pela memória.

Falanges espasmódicas

se apoiam em ombros vacilantes

e o líder em ruínas de fortaleza panóptica

berra ao céu seco e intolerante:

Nada fiz, bendita esfinge exótica!

Mas flagraram o burguês farsante

que legisla sobre gato vivo ou morto,

o pilar de sua lente é torto,

decisão é narciso camuflado.

Sua débil agnosia

recalca o estranho enquadrado.

Sua catarata,

vista grossa de escama chata

banha-se em leite ilusório

escudo para entropia vazia.

Seu estrabismo desesperado

esconde-se em sádico casório

da moral com a culpa vadia.

Mas o negro andaluz triunfal,

erguendo tenebrário em neblina estética

derrubam-nos em lagoa patética.

Vampiros de canino fatal

esfregam sem piedade

nos pulsantes vidros em cal

as patas de trêmula realidade.

E as mãos antiderrapantes

de cientistas pós-modernos

interditadas da tentação matreira

de atirar o Ensaio sobre a Cegueira

à centrífuga do inferno

percebem que a vida-furacão

é uma maçaroca de moscas meladas

e pomposas, espantadas ao clarão da razão.

O assombro de tal feito

nos deixa tão chocados.

Fomos pelo fado amaldiçoados!

Tantos os relacionamentos

em verdades hipotecadas

o calote é tão grande cilada

a desconfiança é generalizada

o pavor quer a vista arrancar!

Se a vida foi sombra em defeito

da cidade-fantasma exigimos o prefeito,

como aos dragões fugazes encantar?

O silêncio, serpente de fogo,

cavalga em pontas de logro

à procura do carinho mais tolerante

paraíso cósmico e errante

que queratinas despedaçadas,

digitais grossas, geladas,

buscam patinando em mármore,

atmosfera de amônio em árvore,

que escalo, espiral de um caldo,

poção de espírito nunca a salvo.

Borracha em chão,

borracha em chão.

Rola covarde o coração.

Quero o beco frio e alucinante

Cara em abismo

Nariz pulverizante

Pois as esquinas mais esqueléticas

as verdades mais sintéticas

são diminutos ácaros de ícaros mosca

Macunaíma de face tosca

bricolage de universos surreais

não aspira por espelho

em invernos matinais

mas por íris-negra, ultradimensional

o mais sofisticado aparelho

relegado ao trivium banal.

Explico que bacanal mais santo

é o que vem do espanto,

encanto, serpentina, encruzilhada

dançante de xamânica jornada,

titânio de carapaça,

caridade à vida sem graça

entre malabares de risos

que acobertam sisos

uma hora inflamados de tanto negar:

— alguém quer meu pão para o jantar?

Às vezes o canibal niilismo

precisa de um bode de sadismo.

— vai uma heroína narcisista?

Fantasia derrotista

de uma velha que acabou de nascer.

Cansou de ordenhar, em lápide, uva.

Mas não sou caracol de guarda-chuva.

Poseidon em tempestade

deve ter mais fidelidade

do que o cego em vertiginosa estrada,

sonhando que assim estava

e acorda, suado,

em dúvida?


Note: Marcella é minha amiga e companheira de aulas e seminários.

Alma inquieta que tudo percebe e absorve - devolve é certo, com mais brilho, com mais lógica, com mais doçura.

Renée Lee

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stado de Hansel!! Não existem palavras e nem coesas seriam se as houvesse. Bem .. é com total encantamento que me rendo.

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