31 de jul. de 2013

Prática de produção textual I


                       Trabalho sobre o conto O enfermeiro de Machado de Assis recontado como:

                               “Memórias póstumas do Coronel Felisberto”

      Nasci numa família abastada. Tive sorte. Poucos eu conheci com a mesma sina. Herdeiro de muitas fazendas e bens, também tinha sob o meu chicote, os melhores escravos que se podia comprar. Era conhecido nas redondezas pelo nome de Coronel Felisberto. Um nome muito respeitado pelo clero, pelos senhores e também pelos nativos daquela região, no momento em que as minhas ordens eram dadas, eram prontamente atendidas. Uma tradição que mantivera desde época dos meus ancestrais.
      Sendo outrora uma criança feliz cujos desejos eram realizados tão logo os revelasse, nunca houve de minha parte nada a reclamar da minha farta criação e ademais, em se tratando da minha família, eu tinha os melhores cuidados que alguém poderia almejar, desta feita era natural, portanto, que eu crescesse com vontades atendidas a tempo. Até para as nefastas pirraças infantis merecedoras de bons corretivos, ainda pela idade de cinco anos, de minha mãe eu somente recebia mimos, já que tudo não passava de criancices, segundo a sua bondosa percepção maternal.
      Vivi muito bem. Tudo teria sido proveitoso se não houvesse as intempéries da vida e com elas as moléstias que me alcançaram perto da idade de sessenta anos e que não eram poucas. Eu, muitas vezes acreditei que elas se agravavam ainda mais devido ao meu temperamento um tanto destemperado, se é que assim possa dizer. Pois bem, vamos as minhas doenças e a aflição que estas me causavam: padecia de um aneurisma, de reumatismo, e três ou quatro afecções menores. As minhas dores eram indescritíveis. O desconforto intolerável. Dizer que eram sintomas de hipocondria, diria que não, eu era um doente de fato. Talvez exagerasse aqui e ali, mas vá lá que os cuidados eram bem pagos.
      Tudo me fatigava ao extremo. Durante bastante tempo sobrevivi nesta malfadada agonia. Faltavam-me forças. Via-me sozinho, pois os meus amigos mais chegados nunca me visitavam, me deixando em completo abandono e assim aos poucos passei a não confiar mais ninguém. Tive alguns enfermeiros à cabeceira e a exceção do último, eles para mim não passavam de aproveitadores, dorminhocos e gatunos. Desconfiava de todos e cria mesmo que me cercavam como se prontos a roubarem os meus bens mais preciosos. Quanto mais doente ficava, mais me sentia tolhido por pensamentos de raiva e desconfiança.
      Os aborrecimentos sucediam e me incitavam desde o amanhecer até à hora do recolhimento, vale ressaltar que havia em mim desde sempre certa dose de maldade, o que fazia com que me deleitasse com a dor e o sofrimento alheio. Confesso agora que fui muitas vezes o grande causador destes transtornos por mera diversão. Podia ser que este modo de agir fosse uma forma de ver amenizado, os meus próprios infortúnios.
      Reconheço, todavia, que de certa maneira eu também fora um tanto rabugento, mas quem não o é quando a idade avança e a morte anda a bater a sua porta? Qual não foi a minha surpresa quando ela não somente bateu como adentrou o meu quarto, naquele fatídico ano de 1860. Um dia que havia começado como outro qualquer, e, no entanto selara meu destino final. Assim é o final da existência de todos.
      Como defunto estava ciente que em nada mais poderia inferir, restava-me apenas a sobriedade para a tentativa de elucidar o que levou este santo enfermeiro a cometer um ato tão brutal. E, no entanto estava certo que nada descobriria. Pelo seu estado, notei a fúria que ainda dominava o seu semblante, pois eu o provocara fortemente, mas também percebi o desespero pelo qual foi tomado após cruel ação.
      Cá estou eu, após o meu último suspiro atado a minha cama. Com marcas em volta do pescoço, mas que ele sabiamente escondera ao abotoar-me até o pomo-de-adão, já se prevenindo de eventuais desconfianças. Não sentia mais o meu corpo. A dor se foi num átimo. O meu assassino continuava ali bem próximo ao meu leito e eu percebia que os seus dedos ainda pareciam estar hirtos e brancos.
      A verdade é que a principio eu mesmo causara a minha morte pelas mãos do modesto e pacato teólogo. Cheguei ao extremo de fato. Não foi ele o primeiro a quem exacerbei ao limite, mas dada as circunstâncias, fora o último. Aqui dividirei a culpa em minha e dele. Assim ficamos quites. Como meu último recurso, ele me foi enviado através da confiança do pároco local com as melhores recomendações.
      No primeiro dia logo que a minha casa chegou, eu estava eu na varanda sentado em uma confortável cadeira, e naquele momento já me sentia em muito enfastiado.  Olhei-o de cima a baixo e senti que aquele rapaz poderia ser o enfermeiro de quem tanto precisava.
      Após ter feito a minha criteriosa inspeção, eu lhe disse sem meias palavras que nenhum dos enfermeiros que eu tivera até então prestavam para nada, pois dormiam muito, eram respondões e andavam atrás das escravas da casa e dentre estes, dois mesmo eram gatunos. Como ele pasmasse e continuasse mudo, peguei-o e desprevenido e lancei-lhe a seguinte pergunta: - Você é gatuno? E ele respondeu respeitosamente com um não senhor. Quando lhe perguntei qual era o seu nome respondeu-me que era Procópio José Gomes Valongo. Espantado eu indaguei se o que ouvira fora Colombo. Ele prontamente retrucou que o certo era Valongo. Evidentemente achei que aquilo não era nome de gente e propus que a partir daquele momento o trataríamos somente por Procópio e assim foi feito.
      Os primeiros sete dias de convivência foram perfeitos e depois disso eu devo admitir que não o chamei muito por este nome, pois sempre buscava adjetivos convenientes a cada situação e em muitas delas o tratei por burro, camelo, asno e idiota entre outros derivados. Havia ainda um dicionário de impropérios com os quais tratava os serviçais de acordo com o meu temperamento e ocasião e o nosso amigo Valongo não escapara a nenhum deles. Assim como fora obrigado a muitas vezes desviar-se dos objetos que eu atirava em sua direção nos momentos de crise mais aguda, os palavrões o acertavam em cheio e podia imaginar que o ferissem na alma já que era um homem devotado a religião. Diferente dos outros, o mancebo tinha uma paciência de santo comigo, e sempre me tratava com a mais bondosa prontidão. No fundo eu sabia que não me restava ainda muito tempo e resolvi sem que em nada lhe dissesse que somente ele seria o meu herdeiro universal.
      A questão é que agora morto, nada poderia fazer para mudar o meu testamento e o enfermeiro agora seria um homem de muitas posses. Numa certa ocasião em que me encontrava de bom humor ainda brincara com ele falando que o queria por perto quando a minha hora chegasse e que a sua companhia seria esperada até a última pá de terra sobre o meu caixão. Fui ainda categórico quando disse que ele haveria de ir ao meu enterro caso contrário, eu disse rindo que voltaria para assombrá-lo à noite. E não foi nenhuma surpresa quando tudo correu conforme era esperado de alguém tão dedicado. Ele não somente seguiu o féretro até a minha ultima morada como antes estivera por toda a noite a velar-me em completo silencio. Os que chegavam viam nele a expressão de profunda dor e abnegação aos meus restos mortais e o cuidado em mandar celebrar missas em meu nome como para apaziguar a sua consciência assassina. 

Antonia Renê A. Cleons
 

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stado de Hansel!! Não existem palavras e nem coesas seriam se as houvesse. Bem .. é com total encantamento que me rendo.

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