Trabalho sobre o conto O enfermeiro de Machado de Assis recontado como:
“Memórias póstumas do Coronel Felisberto”
Nasci numa família abastada. Tive sorte. Poucos eu
conheci com a mesma sina. Herdeiro de muitas fazendas e bens, também tinha sob
o meu chicote, os melhores escravos que se podia comprar. Era conhecido nas
redondezas pelo nome de Coronel Felisberto. Um nome muito respeitado pelo clero,
pelos senhores e também pelos nativos daquela região, no momento em que as
minhas ordens eram dadas, eram prontamente atendidas. Uma tradição que
mantivera desde época dos meus ancestrais.
Sendo outrora
uma criança feliz cujos desejos eram realizados tão logo os revelasse, nunca
houve de minha parte nada a reclamar da minha farta criação e ademais, em se
tratando da minha família, eu tinha os melhores cuidados que alguém poderia almejar,
desta feita era natural, portanto, que eu crescesse com vontades atendidas a
tempo. Até para as nefastas pirraças infantis merecedoras de bons corretivos,
ainda pela idade de cinco anos, de minha mãe eu somente recebia mimos, já que
tudo não passava de criancices, segundo a sua bondosa percepção maternal.
Vivi
muito bem. Tudo teria sido proveitoso se não houvesse as intempéries da vida e
com elas as moléstias que me alcançaram perto da idade de sessenta anos e que não
eram poucas. Eu, muitas vezes acreditei que elas se agravavam ainda mais devido
ao meu temperamento um tanto destemperado, se é que assim possa dizer. Pois
bem, vamos as minhas doenças e a aflição que estas me causavam: padecia de um
aneurisma, de reumatismo, e três ou quatro afecções menores. As minhas dores
eram indescritíveis. O desconforto intolerável. Dizer que eram sintomas de
hipocondria, diria que não, eu era um doente de fato. Talvez exagerasse aqui e
ali, mas vá lá que os cuidados eram bem pagos.
Tudo me
fatigava ao extremo. Durante bastante tempo sobrevivi nesta malfadada agonia.
Faltavam-me forças. Via-me sozinho, pois os meus amigos mais chegados nunca me
visitavam, me deixando em completo abandono e assim aos poucos passei a não confiar
mais ninguém. Tive alguns enfermeiros à cabeceira e a exceção do último, eles
para mim não passavam de aproveitadores, dorminhocos e gatunos. Desconfiava de
todos e cria mesmo que me cercavam como se prontos a roubarem os meus bens mais
preciosos. Quanto mais doente ficava, mais me sentia tolhido por pensamentos de
raiva e desconfiança.
Os
aborrecimentos sucediam e me incitavam desde o amanhecer até à hora do
recolhimento, vale ressaltar que havia em mim desde sempre certa dose de
maldade, o que fazia com que me deleitasse com a dor e o sofrimento alheio.
Confesso agora que fui muitas vezes o grande causador destes transtornos por
mera diversão. Podia ser que este modo de agir fosse uma forma de ver amenizado,
os meus próprios infortúnios.
Reconheço,
todavia, que de certa maneira eu também fora um tanto rabugento, mas quem não o
é quando a idade avança e a morte anda a bater a sua porta? Qual não foi a
minha surpresa quando ela não somente bateu como adentrou o meu quarto, naquele
fatídico ano de 1860. Um dia que havia começado como outro qualquer, e, no
entanto selara meu destino final. Assim é o final da existência de todos.
Como defunto
estava ciente que em nada mais poderia inferir, restava-me apenas a sobriedade
para a tentativa de elucidar o que levou este santo enfermeiro a cometer um ato
tão brutal. E, no entanto estava certo que nada descobriria. Pelo seu estado,
notei a fúria que ainda dominava o seu semblante, pois eu o provocara
fortemente, mas também percebi o desespero pelo qual foi tomado após cruel
ação.
Cá estou
eu, após o meu último suspiro atado a minha cama. Com marcas em volta do
pescoço, mas que ele sabiamente escondera ao abotoar-me até o pomo-de-adão, já
se prevenindo de eventuais desconfianças. Não sentia mais o meu corpo. A dor se
foi num átimo. O meu assassino continuava ali bem próximo ao meu leito e eu
percebia que os seus dedos ainda pareciam estar hirtos e brancos.
A verdade
é que a principio eu mesmo causara a minha morte pelas mãos do modesto e pacato
teólogo. Cheguei ao extremo de fato. Não foi ele o primeiro a quem exacerbei ao
limite, mas dada as circunstâncias, fora o último. Aqui dividirei a culpa em
minha e dele. Assim ficamos quites. Como meu último recurso, ele me foi enviado
através da confiança do pároco local com as melhores recomendações.
No
primeiro dia logo que a minha casa chegou, eu estava eu na varanda sentado em
uma confortável cadeira, e naquele momento já me sentia em muito enfastiado. Olhei-o de cima a baixo e senti que aquele
rapaz poderia ser o enfermeiro de quem tanto precisava.
Após ter
feito a minha criteriosa inspeção, eu lhe disse sem meias palavras que nenhum
dos enfermeiros que eu tivera até então prestavam para nada, pois dormiam
muito, eram respondões e andavam atrás das escravas da casa e dentre estes,
dois mesmo eram gatunos. Como ele pasmasse e continuasse mudo, peguei-o e
desprevenido e lancei-lhe a seguinte pergunta: - Você é gatuno? E ele respondeu
respeitosamente com um não senhor. Quando lhe perguntei qual era o seu nome
respondeu-me que era Procópio José Gomes Valongo. Espantado eu indaguei se o
que ouvira fora Colombo. Ele prontamente retrucou que o certo era Valongo.
Evidentemente achei que aquilo não era nome de gente e propus que a partir
daquele momento o trataríamos somente por Procópio e assim foi feito.
Os
primeiros sete dias de convivência foram perfeitos e depois disso eu devo
admitir que não o chamei muito por este nome, pois sempre buscava adjetivos
convenientes a cada situação e em muitas delas o tratei por burro, camelo, asno
e idiota entre outros derivados. Havia ainda um dicionário de impropérios com
os quais tratava os serviçais de acordo com o meu temperamento e ocasião e o
nosso amigo Valongo não escapara a nenhum deles. Assim como fora obrigado a
muitas vezes desviar-se dos objetos que eu atirava em sua direção nos momentos
de crise mais aguda, os palavrões o acertavam em cheio e podia imaginar que o
ferissem na alma já que era um homem devotado a religião. Diferente dos outros,
o mancebo tinha uma paciência de santo comigo, e sempre me tratava com a mais
bondosa prontidão. No fundo eu sabia que não me restava ainda muito tempo e
resolvi sem que em nada lhe dissesse que somente ele seria o meu herdeiro
universal.
A
questão é que agora morto, nada poderia fazer para mudar o meu testamento e o
enfermeiro agora seria um homem de muitas posses. Numa certa ocasião em que me
encontrava de bom humor ainda brincara com ele falando que o queria por perto
quando a minha hora chegasse e que a sua companhia seria esperada até a última
pá de terra sobre o meu caixão. Fui ainda categórico quando disse que ele
haveria de ir ao meu enterro caso contrário, eu disse rindo que voltaria para
assombrá-lo à noite. E não foi nenhuma surpresa quando tudo correu conforme era
esperado de alguém tão dedicado. Ele não somente seguiu o féretro até a minha
ultima morada como antes estivera por toda a noite a velar-me em completo
silencio. Os que chegavam viam nele a expressão de profunda dor e abnegação aos
meus restos mortais e o cuidado em mandar celebrar missas em meu nome como para
apaziguar a sua consciência assassina.
Antonia Renê A. Cleons
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